João Evangelista Martins Terra, S.J.
INÍCIO
No seu livro História da Questão Religiosa no Brasil, o historiador Antônio Carlos Villaça faz uma observação que me parece profundamente verdadeira: “A questão religiosa” não começa em Olinda ou no Recife. Nem no Pará. Começa no Rio. No Rio de 1872, que festeja a Lei do Ventre Livre. O Visconde do Rio Branco preside ao gabinete e preside, como Grão-Mestre, ao Grande Oriente do Vale do Lavradio. O outro Grande Oriente rival, o do Vale dos Beneditinos, era presidido pelo Grão-Mestre Saldanha Marinho. O Grande Oriente da Rua do Lavradio estava ligado à maçonaria italiana; o Grande Oriente do Vale dos Beneditinos estava ligado à maçonaria francesa.
Em três de março de 1872, houve no Grande Oriente do Lavradio uma sessão para festejar a vitória de Rio Branco, isto é, a Lei do Ventre Livre. Era uma reunião formalmente maçônica. Um dos oradores, o Pe. José Luís de Almeida Martins, recebeu do seu bispo, Dom Pedro Maria de Lacerda, insistente apelo no sentido de afastar-se da maçonaria. Em vão. O padre Almeida Martins publicou o seu veemente discurso maçônico nos principais jornais. O bispo do Rio resolve suspendê-lo do exercício das ordens.
Em si mesmo, o episódio, que inaugura a controvérsia epíscopo-maçônica, é irrelevante. Mas, de fato, teve ampla repercussão.
A maçonaria, ofendida com a reação do bispo, que invoca textos pontifícios não placetados pelo governo imperial, convoca uma sessão para 16 de abril, sob a presidência do Visconde do Rio Branco, Presidente do Conselho. Por sugestão do mesmo Rio Branco, o Grande Oriente decide desencadear uma guerra pelos jornais contra o Episcopado brasileiro.
Em 27 de abril, reunia-se o Grande Oriente do Vale dos Beneditinos e formulava idênticas resoluções. O primeiro resultado foi, assim, a união das duas grandes lojas do Rio, antes divididas.
A história se repete: Pilatos e Herodes também tornaram-se amigos no processo de Jesus. “Pacti sunt amici inter se Herodes et Pilatus in ipsa die, nam antea inimici erant ad invicem” (Lc 23,12).
“A maçonaria brasileira achava-se dividida estava em guerra intestina. O bispo do Rio introduziu a união na Ordem.” Para combater a Igreja, os adversários se uniram e somaram suas forças.
Os dois Grão-Mestres, Rio Branco e Saldanha Marinho, decretaram aos maçons de todo o Brasil unir suas forças para a batalha que se ia travar contra a Igreja.
Os jornais maçônicos agitaram-se. A Família, do Rio; A Família Universal e A Verdade, de Pernambuco; O Pelicano, do Pará; A Fraternidade, do Ceará; A Luz, do Rio Grande do Norte; a Laborum, de Alagoas; O Maçom, do Rio Grande do Sul. Em vários pontos do País foram fundados novos jornais com a finalidade confessada de combater o que chamavam “ultramontanismo” ou “Jesuitismo”, mas que era exatamente a Igreja Católica.
Essa imprensa sectária era liderada por Saldanha Marinho, sob o pseudônimo de Ganganelli. Nos jornais e escritos abundantemente difundidos por toda a nação, negavam os maçons todos os ensinamentos da Igreja, atacavam todos os dogmas da religião católica, principalmente a Santíssima Trindade, a Divindade de Cristo, o Santíssimo Sacramento da Eucaristia etc. O clero era mimoseado com palavras como estas: padrecos, ferrenhos detratores, maltrapilhos, capadócios de grande força, irrisórios pedagogos, sicofantas etc. D. Boaventura Kloppenburg, que nos dá estas informações, afirma: “Temos em mão um livro de 570 páginas, escrito por Ganganelli, com o título Igreja e Estado (Rio de Janeiro, 1873). Da primeira à última página é um ataque constante, virulento, rancoroso, violento à Igreja e a tudo quanto é querido e sagrado aos católicos. Seus furores visam em primeiro lugar a hierarquia, o clero“ (A Maçonaria no Brasil, Petrópolis, 1956). Kloppenburg cita várias passagens dessa obra do poderoso Grão-Mestre Sa1danha Marinho. Vou transcrever aqui um exemplo: “E porque seja mister levar à maior evidência a necessidade indeclinável de expurgar o Brasil dessa horda de bandidos, desses negociantes de consciências, desses soldados da Cúria Romana que, mansa e suavemente, vão-se apossando deste país, cujo futuro domínio eles almejam… Aos poderes do Estado cumpre prevenir contra os males que nos preparam os padres de Roma. Matá-los em princípio, afugentar do Brasil a praga que pretende devorá-lo, livrar, enquanto é tempo, esta terra das garras dos abutres negros que esvoaçam sobre ela, é o principal dever, dever sagrado dos que, à testa dos negócios públicos, devem firmar a felicidade e prover à segurança do País“ (op. cit., p. 205).
“Até 1872, escreve D. Vital, a maçonaria no Brasil respeitou a religião católica. Introduziu-se no clero, nos conventos, nos cabidos, nas confrarias. Mas quando teve um Grão-Mestre à frente do governo nacional… julgou oportuno atacar a Igreja” (apud, A. C. Villaça, História da Questão Religiosa no Brasil, p. 7).
ATUAÇÃO DE D. VITAL
D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, pernambucano, nomeado bispo de Olinda aos 27 anos, tomou posse da diocese em 24 de maio de 1872, acompanhado pelo bispo de Belém, D. Antônio de Macedo Costa, companheiro na famigerada luta da maçonaria que iria começar bem depressa, e quase levou o Brasil às margens do cisma religioso.
A diocese de Olinda foi marcada por longas vacâncias ou por governos muito efêmeros. Entre D. Azeredo Coutinho (1802) e D. Vital (1872), houve praticamente só um bispo que chegou a governar realmente a diocese de Olinda: Dom João da Purificação Marques Perdigão (de 1830 a 1864). Durante esses 34 anos, fundou 19 paróquias, construiu 18 igrejas e criou 4 irmandades. “Tentou reformar o seminário para a regeneração do clero … Mas, devido à sua natural mansidão e sua velhice, não logrou seu objetivo” (J. do Carmo Baratta, Escola de Heroes, p. 83).
Essas vacâncias prolongadas, somadas à precária formação do clero no seminário de Olinda, devido às ideologias do iluminismo, galicanismo e liberalismo, que se tinham enraizado na Igreja, contribuíram para que a maçonaria se implantasse profundamente, sobretudo nas irmandades, que estavam praticamente sob o controle das lojas maçônicas.
Nessa época, a maçonaria ameaçava dominar a Igreja em Pernambuco, fato que levou D. Vital a desencadear contra essa instituição, na época, herética, a mais heróica luta de todos os tempos.
Antes que D. Vital chegasse a Olinda para exercer seu episcopado, já os jornais maçons o atacavam brutalmente, como atacavam o bispo do Rio e a Igreja em geral. Antes, pois, que os bispos de Olinda e do Pará houvessem dito qualquer palavra ou praticado qualquer ação contra a maçonaria.
Não foi D. Vital quem, com uma possível imprudência, rompeu o regime de condescendência de um Ministério maçonizado. Os ataques maçônicos no-lo provam. A maçonaria via a necessidade de concentrar a sua artilharia pesada contra a diocese de Olinda que desde a morte de D. Marques Perdigão (1864) estava praticamente acéfala. A nomeação de um jovem prelado pernambucano formado na França representava um perigo.
As provocações da imprensa começaram logo. Em junho de 1872, apenas um mês depois da posse do novo bispo, anunciavam o órgão oficial de maçonaria e outros jornais do Recife a celebração de uma missa na igreja de S. Pedro, encomendada pela maçonaria para comemorar o aniversário da fundação de uma loja maçônica. O bispo de Olinda ordenou reservadamente ao clero que não celebrasse nem tampouco assistisse à cerimônia alguma, anunciada, de qualquer forma, como maçônica. E de fato a missa não se celebrou.
De novo a imprensa maçônica anunciava outra missa para o dia 4 de julho, por alma de um falecido maçom. De novo teve a negativa da Autoridade Diocesana. A “questão religiosa” estava já prestes a desencadear-se vertiginosa.
A imprensa, a serviço da maçonaria despeitada, atacou irreverentemente os dogmas da Igreja Católica, com insultos ao Papa e à Mãe de Deus. Foi então que D. Vital, em 21 de novembro de 1872, escreveu uma Carta Pastoral ao clero, acautelando seus padres e colaboradores a estarem premunidos a respeito das doutrinas pregadas pela maçonaria.
D. Vital não podia admitir que Irmãos de Irmandades religiosas se filiassem à maçonaria e, com maior razão, proibia a participação do clero. Alguns padres, de fato, estavam integrados na maçonaria, mas se curvaram imediatamente à decisão da autoridade diocesana. Outros preferiram guardar silêncio. Mas não faltou quem se rebelasse contra o bispo. Em Natal, o Pe. Francisco Areas publicou um desafio irreverente, criticando a hierarquia e o Papa. Foi suspenso de ordens e morreu impenitente. Os outros três padres maçons daquela província também foram suspensos, mas se arrependeram e morreram reconciliados com a Igreja.
Na Paraíba, houve outros casos semelhantes. O mais famoso foi o do Pe. João Francisco de Azevedo, famoso orador, inventor da máquina de escrever, que resistiu a todas as súplicas do bispo e teve de ser suspenso das ordens sacras. Em Nazaré, o Cônego Nobre Pelinca foi eleito pela maçonaria juiz da Irmandade do SS. Sacramento. D. Vital o transfere para a freguesia de Goiana, e ele se refugia no Rio de Janeiro, à sombra da Corte maçonizada. Em 1873, é suspenso das ordens o Pe. Antônio Dias da Costa, Vigário de Goiana. Na mesma semana, o bispo suspende o Deão Joaquim Francisco de Faria. Foi uma verdadeira explosão. O Deão Faria, diretor do Ginásio Pernambucano, que era político respeitado e tinha sido Vigário capitular em duas vacâncias da diocese, era um dos chefes de Partido Maçônico Liberal. Convocou então uma reunião para protestar contra o ato do bispo e contra os Jesuítas, que eram considerados, com razão, amigos do bispo, mas, erradamente, como seus assessores em todas as medidas disciplinares Depois de ouvir a palavra do Deão, a multidão dirigiu-se para o Colégio São Francisco Xavier, dos Jesuítas, que não distava muito do Ginásio Pernambucano. O ataque contra o colégio foi violento. Num instante, os desordeiros penetraram em todos os lugares, quebraram os móveis e agrediram fisicamente oito jesuítas. Os alunos internos, apavorados, fugiram e saltaram os muros para refugiar-se nas casas vizinhas. Destruíram a capela e só não profanaram o altar onde estava o Santíssimo porque um grupo de senhoras, que estavam em adoração, defenderam-no com os próprios corpos. Em seguida, a multidão de maçons fanáticos se dirige à redação do jornal católico “União”, queima todo o material inflamável e joga as máquinas tipográficas no rio Capibaribe.
A maçonaria resolveu então esmagar a resistência do bispo. Para mostrar sua força, publicou com grande alarde, através de seu órgão “A Verdade”, os nomes dos maçons que eram ao mesmo tempo sacerdotes ou membros das irmandades e confrarias religiosas e alguns nelas empregados como juízes, tesoureiros, secretários etc. Um deles, o Grão-Mestre Aires de Albuquerque Gama, foi imediatamente nomeado para juiz dos irmãos da Soledade, situada a 80 passos do Palácio Episcopal. Era ele Grão-Mestre maçom, colaborador da folha maçônica, autor de vários artigos contra a hierarquia e a Igreja.
D. Vital viu que não podia mais dissimular e mandou as irmandades exortarem seus membros filiados à maçonaria para que abjurassem ou fossem eliminados no caso de pertinácia. Como não atendessem a nenhuma exortação e recalcitrassem contra as prescrições diocesanas, recorreu às penas canônicas, lançando interdito sobre a confraria da Soledade, do SS. Sacramento e outras.
O PROCESSO
As irmandades maçonizadas interpuseram recurso à Coroa contra o bispo. O Governo Imperial, cujo chefe era o Visconde do Rio Branco, Grão-Mestre do Grande Oriente, no dia 12 de junho de 1875, intimou o bispo diocesano de Olinda a levantar o interdito sobre a Irmandade do SS. Sacramento do Recife. D. Vital não cedeu.
O Conselho de Estado considerava o interdito ilegítimo, porque a excomunhão baseava-se em Bulas pontifícias que não tinham recebido o beneplácito da parte do poder ci vil brasileiro. E porque, na Pastoral de 2 de fevereiro de 1873, o bispo negava a legitimidade do beneplácito, podendo por isso incorrer nas penas dos artigos 79 e 81 do Código Criminal que punia os que recorressem à Cúria Romana ou à Nunciatura sem prévia licença do Governo.
O bispo de Olinda, acusado perante o Supremo Tribunal por esses motivos, foi preso e recolhido ao Arsenal da Marinha do Recife, em 2 de janeiro de 1874. A figura digna e firme do Prelado brasileiro arrancou dos corações do povo brasileiro um preito de admiração imperecível.
Na sessão do julgamento apresentaram-se espontaneamente para defendê-lo o Conselheiro Zacarias de Góis e Vasconcelos e o senador Cândido Mendes de Almeida, que produziram uma defesa irrefragável. Mas a condenação de D. Vital já estava de antemão predeterminada. Do tribunal tinham sido afastados todos os juízes considerados católicos. Foi condenado a quatro anos de prisão com trabalho forçado. Por decreto de 12 de março, foi-lhe comutada a pena a prisão simples na Fortaleza de São João, no Rio.
Prevendo os acontecimentos, o bispo já tinha escolhido, em 31 de dezembro, três virtuosos sacerdotes para substituí-lo na qualidade de 1 º, 2º, e 3º Governadores da Diocese, sucessivamente. Foram eles: Cônego José Joaquim Camelo de Andrade, Pe. Sebastião Constantino de Medeiros e Pe. Joaquim Graciano de Araújo. A previsão do bispo se realizou. Cada um dos governadores eleitos foi sucessivamente encarcerado e condenado à mesma pena que o bispo por se terem recusado a levantar o interdito.
Para obrigar o bispo a voltar atrás, o Ministério Rio Branco apelava para medidas repressivas cada vez mais injustas e clamorosas. Saldanha Marinho, em nome da maçonaria, escrevia artigos cada vez mais desabridos a favor do Ministério, insistindo em desmoralizar a Igreja Católica.
Rio Branco conferenciou demoradamente com D. Pedro II e expediu várias ordens ao Governador Lucena no Recife, determinando a deportação dos jesuítas de Pernambuco para Lisboa. Os padres que se manifestaram a favor do bispo tiveram suas côngruas suspensas.
O ministro João Alfredo, apesar de ser primo de D. Vital, era maçom ferrenho e criou os piores casos contra a diocese de Olinda. Fez suspender os honorários dos professores do Seminário de Olinda e a subvenção devida aos seminaristas.
Outra vítima da maçonaria foi o bispo de Belém do Pará e depois Arcebispo Primaz da Bahia, Dom Macedo Costa, que foi acusado pelo mesmos “crimes” e condenado à mesma pena que D. Vital.
A reação da opinião pública nacional e mundial foi tamanha que o Ministério Rio Branco caiu. O imperador teve de escolher o Duque de Caxias para chefiar o novo Gabinete. Caxias condicionou a aceitação do Ministério à concessão da anistia aos dois bispos.
Luiz Inácio de Lima e Silva, Duque de Caxias, era também maçom, mas menos sectário e mais objetivista. Fez ver ao Imperador que a solução da anistia incondicional dos prelados era a única medida capaz de evitar uma crise mais aguda.
Em 17 de setembro de 1875, foi assinado o decreto que punha fim à dolorosa “Questão Religiosa”, que havia três anos intranqüilizava o país e tinha minado completamente a existência da própria monarquia.
Quem saiu vitoriosa dessa dolorosa questão foi a Igreja, que, forçando o Governo a recuar, deixou o Estado regalista desmoralizado e a maçonaria completamente abalada em seu prestígio. D. Vital passou para a posteridade como o Mártir da maçonaria.
Os ataques da imprensa maçônica ainda continuaram, mas o clero, escarmentado, saiu depurado e purificado.
A Companhia de Jesus, que foi perseguida por causa da fidelidade ao bispo diocesano, também saiu ganhando. O Secretário de D. Vital, Pe. José Afonso de Lima e Sá, que o acompanhou durante todo o tempo na prisão e depois o acompanhou na Europa, entrou na Companhia de Jesus em Roma, em 1892. O Pe. Sebastião Constantino de Medeiros, que foi o Segundo Governador do Bispado durante a prisão de D. Vital, e sofreu a mesma pena do bispo, também entrou na Companhia de Jesus, em 1878, em Roma, onde ficou como professor no Colégio Pio Latino, até sua morte.
N.R. Apesar de muitos profanos e alguns maçons não conseguirem fazer a distinção, a maçonaria não é uma religião. Ela aceita homens de todas as religiões e até mesmo homens sem religião, contanto que acreditem em uma "Força Superior"
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