Mestre em História Social pela FFLCH-USP e organizador de Cartas a Favor da Escravidão (Hedra)
Numa crônica de 10 de janeiro de 1884, Machado de Assis contou a história de um camarista de D. João VI, o conde de Parati, punido com o uso de um hábito da igreja católica por ser maçônico, e comentou: "De certo modo, foi uma antecipação do conflito que mais tarde levou dois bispos aos tribunais, com a diferença que aquilo que o Conde de Parati só pôde fazer obrigado foi justamente o que a maçonaria queria fazer por vontade própria: - andar de hábito. Não penso nisto que me não lembre do nome que em geral teve esse famoso conflito [...]. Lembra-se o leitor? Questão epíscopo-maçônica"1 . O trecho, que indicia a presença viva da Questão Religiosa, ocorrida dez anos antes, no espaço público do Segundo Reinado nos anos 1880, reforça o argumento geral de O Altar & o Trono, de Ivan Teixeira, o mais recente estudo sobre O Alienista (1881-82). Até agora, a narrativa vinha sendo entendida como encenação de uma crítica impiedosa à ciência quando dotada do poder absoluto de conceituar as patologias e realizar sua terapêutica. De hoje em diante, é provável que não seja lida senão como alegoria da disputa mais ampla pelo poder, sobretudo entre o Estado e a Igreja, durante o processo de formação de uma cidade. Uma alegoria motivada justamente pela Questão Religiosa.
Apenas comprovada, a hipótese já daria ao livro merecidos títulos. Mas o autor ainda acresceu estudos que vão muito além da leitura intrínseca de O Alienista, relacionando a obra com diversas questões pungentes do tempo e com a revista A Estação, na qual a novela foi publicada pela primeira vez e em que Machado de Assis atuou por quase duas décadas (1879-98). Procedeu, assim, a uma análise cultural que dá continuidade à sua outra pesquisa de fôlego, Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica (Edusp, 1999), em que relacionara um texto literário específico - O Uraguai, de Basílio da Gama - com as práticas e os discursos culturais do reinado de D. José I (1750-77). Por trás da coerência metodológica, um fio temático ainda une Mecenato Pombalino e O Altar & o Trono, e eis que é o conflito entre o Estado e a Igreja na longa duração que marcou a passagem do Antigo Regime para o mundo contemporâneo. Quem já conhece o primeiro estudo de Teixeira não deixará de notar sua escolha por textos que preconizam a autonomia do Estado em face da igreja romana ou de suas instituições, como o fariam o poema épico de Gama e a novela de Machado. Mas não se trata de preferências. O Altar & o Trono parece, antes, o ponto de chegada de uma trajetória intelectual coerente, fundada em métodos e temas bem delimitados.
POÉTICA CULTURAL E OS EIXOS NARRATIVOS DE O ALIENISTA
Segundo Ivan Teixeira, a narrativa sobre as experiências de Simão Bacamarte na pequena Itaguaí seria a encenação alegórica de uma disputa pelo poder, na qual estariam envolvidos o Estado e a Igreja, como dito acima, mas também a ciência e o binômio política-povo. Em sua perspectiva teórica, sintetizada no primeiro capítulo do livro ("Teatro do Mundo & Pressupostos da Encenação"), tais categorias não devem ser apreendidas como absolutas nem trans-históricas, pois adquirem sentido apenas em um quadro de referências culturalmente definido. Por "Povo" e seu correlato "rebelião popular", por exemplo, não se imagina o estouro libertário dos oprimidos contra a estrutura social que os explora - primeiro sentido que ocorre à mente do pesquisador atual -, mas sim o significado de "rebelião popular" no horizonte de expectativas dos agentes discursivos da época. Dir-se-ia o mesmo para Estado, Igreja e Ciência, conceitos cujo conteúdo só um esforço de arqueologia de textos a eles correlatos poderia fixar. Nesse tipo de análise, a que o autor vem chamando de "poética cultural" em ensaios publicados desde 2003, as obras literárias são componentes de uma estrutura discursiva mais vasta e geradora de sentido, que o tempo rói à medida mesma que o cânone, para preservá-las, vincula-as a um télos ora nacional, ora modernista, ora revolucionário, quando não tudo isso ao mesmo tempo. Daí resulta que o cânone, por respeitável que seja, não figura senão uma galeria fantasmagórica de ruínas discursivas, cuja compreensão adequada exige a restauração dos monumentos de que, em algum ponto do passado, fizeram parte.
Assim, nos capítulos VI ("O Altar & o Trono"), VII ("Racionalidade & Poder") e VIII ("Desrazão & Poder"), que compõem o núcleo do livro, Ivan Teixeira relaciona o entrecho de O Alienista com três fenômenos discursivos do repertório cultural do Segundo Reinado que o teriam motivado: a dissidência em torno da soberania entre um Estado constitucional e uma Igreja romana internacionalista, nos termos da Questão Religiosa (1872-75); a consolidação da medicina psiquiátrica no Brasil a partir da criação do Hospício de Pedro Segundo; e a ameaça à unidade territorial do país, tal como fora experimentada durante a Regência (1831-40). A fim de aquilatar o peso desses fenômenos no processo de criação e significação do texto literário, o autor perfez uma análise de poética cultural do período, recobrando a rede de textos que delineou os sentidos das referidas questões para os atores históricos do Segundo Reinado.
Conforme Teixeira, o núcleo narrativo de O Alienista, aquele que conduz as ações até determinar seu desfecho, seria a relação entre Simão Bacamarte e o padre Lopes. Como se sabe, o incansável médico superou a tudo e a todos para fundar o Hospício da Casa Verde, internar os monômanos da vila de Itaguaí e alhures, ampliar os critérios de loucura até confinar quatro quintos da população local, enfrentar a fúria do povo e dos vereadores, inverter os critérios iniciais de insânia e, finalmente, substituir os alienados pelos que, até então, tinham gozado a liberdade. Dos opositores, apenas o padre Lopes lograria domar o cientista, convencendo-o, habilmente, de que o objeto da ciência devia recair sobre o próprio sujeito do conhecimento. Colocado nesse círculo de giz, Bacamarte se interna na Casa Verde para um cerrado exame de si mesmo, mirrando, em estudos infindáveis, até a morte. Ao final, o narrador anuncia que, possivelmente ventilado pelo padre Lopes, correu o boato entre os moradores de que nunca houvera outro louco por ali além do próprio médico. Conquanto apareça pouco na novela, o prelado seria, assim, crucial na construção do desenlace e na fixação de um conceito de loucura contra o próprio Bacamarte.
Sem prestar a devida atenção no papel do religioso, a fortuna crítica de O Alienista tem incorporado essa visão condenatória do cientista, ignorando que é um parti pris de Lopes, também enredado nas disputas pelo poder na cidade. Para o autor de O Altar & o Trono, a voz narrativa não apenas repele a ação do clérigo, mas simpatiza com a posição de Bacamarte, que protagoniza a experiência radical de conferir teor ético aos critérios de loucura originalmente psíquicos. Essa experiência, feita em nome da razão moral, alçaria as reclusões do cientista à condição de "atitudes regeneradoras em tempos de domínio da desrazão generalizada" (p. 238). Coerente com suas premissas teóricas, Teixeira ligou tal organização do enredo - em que o polo negativo passa à Igreja e o positivo, à racionalidade ética - à Questão Religiosa, assunto que inundou a consciência dos contemporâneos e chegou a ser qualificado como um dos vetores da queda do Império na historiografia factualista da primeira metade do século XX. Nas últimas décadas, o problema andava esquecido dos modelos explicativos dos historiadores, que refinaram seus instrumentos de análise de processos sociais. Mas nada impedia que outra mirada teórica - como a da poética cultural - voltasse a dar-lhe importância, no campo dos estudos literários.
A Questão Religiosa derivara da bula Quanta Cura e de seu anexo Syllabus de Erros (1864), que o Papa Pio IX, engolfado nos conflitos da unificação italiana, editou para combater o processo de secularização progressiva a que o liberalismo vinha submetendo a economia, a política e a vida civil. No limite, pregou a retomada do controle eclesiástico sobre esferas cada vez mais reguladas pelo Estado. Como, na Constituição brasileira, a validade de tais textos pendia da aprovação do Executivo, a Quanta Cura e o Syllabus, por motivos óbvios, foram recusados. Sem embargo, alguns bispos os acataram, excomungando dos quadros da Igreja membros da maçonaria, o que levou o governo a prendê-los por desobediência legal. O imbróglio suscitou uma série de caricaturas na imprensa da Corte, como a Revista Ilustrada e O Mosquito, e de artigos de Joaquim Saldanha Marinho no Jornal do Commercio, depois recolhidos no livro A Egreja e o Estado (1874). Como mostrou Teixeira num formidável esforço de levantamento e análise documental, tais discursos - visuais e verbais - pintam o Estado como o polo da razão e das Luzes, enquanto a intervenção eclesiástica como o do obscurantismo e das trevas. Em 1875, o governo concederia anistia aos bispos, motivando novo ciclo de charges alegóricas, nas quais a Igreja ressurgia como o domínio irracional do poder sobre a racionalidade do mundo contemporâneo. Para Ivan Teixeira, O Alienista, publicado em 1881-82, seria uma variante literária do discurso das caricaturas antirromanas publicadas na imprensa brasileira. Até mesmo a reviravolta dos episódios - a prisão dos bispos (triunfo do Estado) e sua soltura (vitória da Igreja) - teria sido mimetizada na reclusão de Lopes (vitória do Estado, das Luzes) e na internação de Bacamarte (triunfo da Igreja, da ignorância).
Proposta assim, essa leitura teria seus limites. Afinal, as caricaturas plasmam a Igreja nas trevas, mas o padre Lopes é encarcerado só quando Bacamarte - crente no princípio de que a doença é a exceção e a sanidade, a regra - define como alienáveis os homens de boa conduta ética, casos raríssimos e, portanto, desviantes da norma. Por outro lado, Bacamarte não partilha a pureza conceitual que as caricaturas dão à noção de Estado, pois, suposto atinja a glória moral na prisão dos aéticos, seu apego desinteressado à ciência também o leva à inconstância, ao paradoxo, à frieza desumanizadora e ao ridículo. Acerca da primeira objeção, seria sempre possível notar que a presumida correção moral do prelado comprova apenas a sutileza de sua dissimulação, que embrulha o mais atilado observador da cidade, como o é Bacamarte. Há uma resposta, contudo, de corte mais teórico para desfazer em conjunto as duas ressalvas. Graças à mistura dos polos conceituais que a imprensa da Corte apartava de modo maniqueísta (noção de Estado perfeito vs. noção de Igreja degenerada), O Alienista não se permite enquadrar como alegoria integral de outros discursos sociais. Segundo a análise de Ivan Teixeira, sua dimensão alegórica resulta parcial porque, na ficção, operam as lentes deformadoras da sátira menipeia - lentes que distorcem, mas não cegam as proposições morais da novela. É uma colocação oposta à tradição crítica segundo a qual a sátira machadiana faz terra devastada das distinções morais.
O segundo móvel da dinâmica de O Alienista seria o conceito de loucura, ponto bem frequentado pelos comentadores. A novidade que Teixeira traz ao leitor está na reconstituição de um discurso histórico sobre o Hospício de Pedro Segundo, que teria fornecido referências culturais para a composição da novela. Com base nos textos analisados - "Reflexões Acerca do Trânsito Livre dos Doidos pelas Ruas da Cidade do Rio de Janeiro" (José Francisco Sigaud, 1835), "Importância e Necessidade da Criação de hum Manicômio ou Estabelecimento Especial para o Tratamento dos Alienados" (De-Simoni, 1839) e O Rio de Janeiro, sua Historia, Monumentos, Homens Notaveis, Usos e Curiosidades (Moreira de Azevedo, 1878) -, o autor traça uma série de paralelos entre os lugares-comuns científicos ou históricos e o enredo ficcional, como a descrição pormenorizada dos loucos, a lotação do hospício logo após sua abertura, a oposição obscurantista dos habitantes, a proveniência local e nacional dos alienados, o consórcio entre ciência e política na direção da cidade e assim por diante. Mais uma vez, o fim não é "colar" o texto machadiano em tais discursos, mas ver como o primeiro reorganiza os dados do segundo. Como diz o autor, a "ironia cética da razão ficcional" faz a autoridade científica, vetor da ordem, mudar-se em "origem da desordem", mostrando como é convencional a loucura que a ciência pretendia naturalizar. Afinal, à medida que Bacamarte altera os princípios da insanidade e ordena a reclusão involuntária dos alienáveis, a fonte das atitudes regeneradoras torna-se, ela mesma, degenerada.
Na disputa pela direção da cidade, o último elemento de O Alienista seria o conceito de levante popular, protagonizado pela rebelião dos canjicas. Para restaurar o seu significado cultural, Teixeira analisou a Memória Histórica da Revolução da Província do Maranhão desde 1838 até 1840 (Gonçalves de Magalhães, 1848), donde extraiu a noção de inconsistência moral e doutrinária das rebeliões, em oposição a um centro puro do poder, o imperador. Em abono de sua própria hipótese, o autor poderia ter analisado o panfleto Ação, Reação e Transação(1855), do jornalista, professor do Colégio Pedro II e deputado conservador Justiniano José da Rocha, dada a sua importância para as narrativas produzidas entre 1870 e 1900 no Brasil, entre elas Um Estadista do Império(Joaquim Nabuco, 1897-99). Nesse opúsculo, Rocha conceitua, com ares de teoria, as revoltas eclodidas no Brasil, principalmente as do período regencial, tachando-as de "anárquicas" e centrífugas, isto é, ameaçadoras da unidade nacional, salva a tempo pelo Segundo Reinado. Tal abordagem apenas reforçaria a leitura de Teixeira, segundo a qual a ação dos canjicas, em O Alienista, reitera o ridículo e o infame da ação dos populares na historiografia. Ao contrário dos casos anteriores, a sátira de Machado e os discursos extraliterários coincidem mais nesse ponto, pois, no lugar da inversão semântica, haveria só acréscimo de humor.
Em suma, essas três linhas narrativas - sobre a Igreja, a ciência e a política - parecem figurar um exercício alternado de poder sobre o destino da cidade, em que não se elege nenhuma como desejável. Pelo contrário, O Alienista seria um discurso satírico sobre a falência da ética - ou sobre a forma como os princípios morais são reduzidos ao valor de troca na economia do poder. Enquanto os lugares-comuns institucionais unem Igreja e sinceridade, ciência e verdade, política e honestidade, a narrativa troca os últimos termos por hipocrisia, convencionalismo e interesse particular. Nas palavras de Teixeira, parece insinuar "que coerência e poder sejam categorias excludentes" (p. 317).
UMA TERCEIRA VIA PARA OS ESTUDOS MACHADIANOS
Como se vê, O Altar & o Trono não se entronca em nenhuma das duas linhas teórico-metodológicas que têm ditado a agenda de pesquisa da ficção machadiana - e que podem ser chamadas de "alegórica" e "estruturalista", embora esses termos não as traduzam com perfeição. Essas linhas se distinguem uma da outra na medida em que dão à ficção de Machado estatutos mutuamente excludentes, definindo-a ou como "caixa de ressonância" ou como "máquina retórica". No primeiro caso, a força da prosa machadiana derivaria de sua capacidade de reapresentar, na organização do entrecho e no estilo da frase, a dinâmica de um quadro social superior; no segundo, de sua habilidade para esvaziar discursos extraliterários e criar indeterminações corrosivas de sentido, cuja fixação dependeria do ato autônomo e extrínseco da leitura. Embora não discorde da última abordagem - constituída por textos de críticos como Afonso Romano de Sant'Anna, Abel Barros Baptista e João Adolfo Hansen -, O Altar & o Trono não se reduz a ela, pois sugere que o repertório cultural do tempo contribuía para a determinação do conteúdo da ficção de Machado.
Em contrapartida, o diálogo com a primeira abordagem parece mais direto e, por isso, pode ser mais bem desenvolvido. Visando as práticas discursivas que encerram o texto de Machado, Teixeira procedeu a um estudo amplo das páginas de A Estação - Jornal Ilustrado para a Família, em que foi publicado pela primeira vez O Alienista. Nesse veículo, dedicado à moda parisiense, aos faits divers e ao entretenimento literário, o mais radical e aparentemente menos ideológico escritor brasileiro do século XIX trabalhou por dezenove anos consecutivos - fidelidade empresarial sem correspondência em seu currículo. Acontece que esse ofício vinha sendo entendido, desde a leitura de Lúcia Miguel Pereira na década de 1940, como um expediente pragmático de necessidade financeira. Forçado a publicar ali seus textos, o autor compensaria esse motivo rasteiro com uma estética sobranceira, que desprezava seus leitores imediatos. Segundo Ivan Teixeira, porém, sua relação com o periódico não seria pragmática, mas sim programática.
Lendo os números da revista na Biblioteca Guita e José Mindlin (São Paulo), no Arquivo Edgar Leuenroth (Campinas) e na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), Teixeira encontrou um perfil editorial avançado para os padrões da época em questões como papel social da mulher, escravidão negra, consumo, linguagem, práticas de higiene conforme a ciência, etc. Daí o autor identificou dois tipos de relação de O Alienista com o periódico, um temático e direto, outro funcional e indireto. Por um lado, alguns daqueles valores ocorreriam em tom normativo no corpo da novela, como a prevenção contra o luxo excessivo ou contra a linguagem hiperbólica, identificáveis no consumismo vaidoso de D. Evarista, esposa de Bacamarte, e na retórica seiscentista de Martim Brito, orador de ocasião. Por outro, o estudioso teve o cuidado de pontuar que, se A Estação pode ser "interpretada como vitória de um conjunto conhecido de valores, O Alienista propõe uma alternativa sarcástica contra a rigidez dessas mesmas certezas" (p. 65), tal como se nota na exploração da incompatibilidade entre coerência e poder. Por radical que fosse, uma advertência moral dessa natureza também cumpria a função editorial e social, partilhada por outros textos do periódico, de ilustrar e instruir o público, que a aceitava sem julgá-la hostil. Poder-se-ia dizer que, se para alguns críticos, as leitoras de A Estação não entenderam Machado de Assis, O Altar & o Trono mostra que os mesmos críticos não entenderam as leitoras de A Estação.
Teixeira formulou ainda a hipótese, aliás bem fundamentada, de que o periódico influiu na evolução da imagem artística de Machado. Em textos anônimos, mas talvez do próprio punho do escritor, o veículo o ergueu aos poucos à condição de maior prosador brasileiro da época. No início da parceria, em 1880, um artigo lhe deu "um lugar bem alto, o imediato a Alencar" (p. 118); em 1884, outro já o colocava em pé de igualdade com o criador deIracema (p. 128). Dois anos depois, seu amigo Arthur Azevedo, também colaborador do órgão, o içou ao posto de "figura mais saliente da literatura brasileira contemporânea" (p. 130). Quando, em 1888, Machado recebeu a comenda da "Ordem da Rosa", o editor de A Estação, Henrique Lombaerts, coroou a jornada rumo à glória invertendo a hierarquia entre patrono e protegido, sem deixar de lado a autopropaganda, é claro: "Congratulamo-nos com o Governo Imperial por esse ato, que o honra ainda mais do que ao fino inexcedível prosador e poeta, cujo nome há tanto tempo enobrece o suplemento literário da Estação" (p. 131). Nessa escalada, o brilhante destino histórico do nome Machado de Assis não pode ser apartado de seu ponto de partida, por mais terra a terra que, à primeira vista, sejam uma revista de moda e um punhado de leitoras da Corte.
Também é possível notar um diálogo de Teixeira com Roberto Schwarz, ainda que não esteja explicitado em O Altar & o Trono. Como é sabido, Schwarz vem propondo, há décadas, uma leitura de Machado que desenvolve o método da "redução estrutural", formalizado por Antonio Candido num conhecido estudo das Memórias de um Sargento de Milícias. Esse método, que supõe uma relação dialética entre expressão artística e processo social, consiste em decifrar como princípios ordenadores do mundo social são transpostos para o plano formal da obra literária. Embora unisse história e literatura, Candido jamais formulara um modelo explicativo daquela dinâmica histórica que sofreria a "transposição estética" - no limite, o autor identificava as linhas do enredo ficcional e as projetava para uma suposta dinâmica social. Diante do desajuste, Schwarz tentou calibrar os termos da equação adotando um método sistemático de leitura da história do Brasil - o proposto pelo Grupo do Capital, núcleo original da informalmente chamada "Escola Sociológica de São Paulo". Assim, afiançava com segurança o intercurso entre o social e o ficcional. Enquanto esse modelo de história vigorou (c. 1970 a c. 2000), a leitura de Schwarz se impôs como verossímil.
Basicamente, as premissas desse modelo de leitura da história diziam que havia uma divisão internacional do trabalho; que essa divisão separava o centro do capitalismo contemporâneo e as periferias, entre elas o Brasil; que o centro era o mundo do liberalismo, enquanto a periferia brasileira, o da escravidão negra; e que, por fim, tais mundos, embora se influenciassem reciprocamente, eram incompatíveis do ponto de vista material, simbólico e ideológico. Por causa da incompatibilidade entre liberalismo e escravidão, as instituições e as ideias desenvolvidas na Europa, quando adotadas no meio brasileiro, resultavam postiças, mal-ajustadas ou, para usar a expressão célebre, "fora do lugar". A ficção de Machado seria eficaz porque, incorporando essa tensão estrutural no plano do enredo (Capitu encarnaria o Iluminismo, por exemplo) e do estilo (a "volubilidade" dos narradores), acabava por torná-la visível e ridícula ao juízo imperdoável da sátira. A leitura de Schwarz abalou-se, porém, quando ruiu o modelo interpretativo da história que lhe dava suporte, e a incompatibilidade entre liberalismo e escravidão passou a ser entendida não como intrínseca à história, mas como resultado de uma reformulação do conceito de liberalismo no final do século XIX. Tornou-se, então, evidente a todos que o estudioso inserira no processo histórico brasileiro e no texto machadiano ideias anacrônicas, formuladas por pesquisadores do século XX. A questão não seria se o liberalismo estava "fora do lugar", mas se sua noção de liberalismo não estava "fora do tempo".
Como alternativa a essa agenda de pesquisa, um estudo como O Altar & o Trono recoloca o texto de Machado de Assis em contato direto com outros discursos contemporâneos, afastando-o das correntes intelectuais do século XX que tornaram incaracterístico seu conteúdo próprio. Mais do que isso, contribui também para localizar Machado em um determinado lugar social do discurso que, longe de torná-lo à frente de seu tempo, o integra num grupo de letrados e políticos atuantes desde 1860 até o início da Primeira República. Nas palavras de Teixeira, "O Alienista poderá também ser entendido como intervenção de apoio à renovação institucional do país" em favor "de princípios que facultariam ao país uma ordenação jurídica, social e econômica identificada com o que então se entendia por moderno e renovador" (pp. 226 e 235). De fato, a Questão Religiosa, por exemplo, seria fenômeno de uma grande crise que abalou o Império do Brasil desde os anos 1860. Por causa de uma série complexa de eventos, cujos efeitos no Brasil ainda precisam ser mais bem entendidos, como a Primavera dos Povos (1848), a subsequente reforma dos regimes representativos (de 1850 em diante), a Guerra de Secessão nos EUA (1861-65) e a Guerra do Paraguai (1864-71), o governo imperial iniciou reformas que iam desde a escravidão negra até as eleições e a natureza do Poder Executivo.
Assim, os letrados da última geração imperial discutiram a fundo a construção de um novo tipo de modernidade no Brasil (essa, sim, entendida como um liberalismo antiescravista), dividindo-se em dualidades facilmente baralháveis - monarquismo vs. republicanismo, cativeiro vs. abolição, latifúndio vs. democracia rural, voto censitário vs. voto universal, catolicismo vs. positivismo, centralização vs. federação, Estado laico vs. Estado religioso, etc. Todos eles - dos monarquistas aos republicanos - contribuíram de certo modo para a derrocada do Segundo Reinado, pois suas propostas minaram os compromissos históricos travados entre o Estado e a sociedade brasileira na primeira metade do século XIX. Como disse um desolado Nabuco em Minha Formação (1900), as "antigas gerações [...] criaram e fundaram o regime liberal que a nossa deixou destruir..."2.
Visto em perspectiva ampla, O Alienista seria, portanto, apenas um entre os vários textos compostos naquela quadra que tornou a transformação do presente incontornável justamente porque era factível. Poucas vezes na história brasileira as bandeiras políticas sacudiram tão próximas do horizonte da utopia. Imantado pela Questão Religiosa, O Alienista não era só uma advertência contra o ultramontanismo; alertava contra os abusos intrínsecos à prática do poder, independentemente da verdade que entusiasmava os agentes históricos envolvidos na construção do porvir. Longe de ser relativista ou indiferente, o texto, portador de uma energia política ainda desconhecida dos estudiosos, parece antes um corretivo ao entusiasmo. Nesse sentido, a expressão "dinâmica do poder", presente no subtítulo de O Altar & o Trono em referência a O Alienista, pode ser coextensiva às disputas mais amplas que marcaram o ocaso do Segundo Reinado e que devem ter motivado outras importantes obras de Machado. O que Ivan Teixeira afirmou sobre a narrativa - "[...] é possível imaginar que O Alienista talvez seja o texto mais densamente político de Machado de Assis" (p. 24) - está correto por ora. Mas é uma verdade que pesquisas futuras, se investirem em métodos semelhantes ao seu, podem tornar superada.
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