Há em curso algumas propostas de adiamento das eleições municipais devido à crise sanitária causada pelo coronavírus. É sabido que as eleições provocam grande concentração de pessoas, seja ao pé das urnas, seja na imediação das seções de votação. Como a possibilidade de contaminação já é comunitária, de fato seria um risco maior sua realização neste momento.
Estão marcadas as eleições para novembro, como é sabido. Se até lá o risco de contágio estiver presente, a adoção da medida seria indispensável. No entanto, se o adiamento ultrapassar o dia 31 de dezembro, estaremos diante de grave questão: os atuais mandatos de prefeitos e vereadores deverão ser prorrogados?
É princípio de direito que mandatos só podem ser prorrogados pelos mandantes. Ora, o mandante, em matéria política, é o povo. Só ele poderia fazê-lo, pelos meios adequados à representação nacional (plebiscito ou emenda constitucional).
As cláusulas pétreas inseridas na Constituição estão dispostas em seu artigo 60, § 4º. Entre elas, o voto direto, secreto, universal e periódico. Também diz a Carta Magna que não serão admitidas emendas tendentes a abolir a federação e a República. A temporalidade dos mandatos eletivos é um dos princípios dela derivados. Não haverá República se os mandatos eletivos não forem limitados no tempo.
De há muito, juristas eméritos têm se posicionado contra a prorrogação de mandatos. O ministro Gonçalves de Oliveira, relatando a Representação 650 perante o STF, nos idos de 1965, assim se pronunciou:
"Venho esclarecer, pela remissão ao artigo 134 da Carta Magna do País, que a Assembléia não tem poderes para prorrogar mandatos. Somente 'o voto universal e direto', como está no citado artigo, pode conferir mandatos eletivos".[1]
O saudoso ministro Hermes Lima assim se posicionou perante o STF por ocasião desse julgamento, concordando com o voto do relator:
"A prorrogação de mandatos da Emenda Constitucional mineira fere esse principio implícito na forma republicana representativa". [2]
Na mesma assentada, assim também se pronunciou o não menos ilustre ministro Evandro Lins e Silva:
"Não é possível frustrar a vontade soberana do eleitorado com a prorrogação decretada pela Assembléia Legislativa contra preceitos expressos da Constituição Federal".
Também o ministro Galotti foi veemente contra a prorrogação de mandatos, verbis:
"O que estamos julgando hoje não é apenas o caso de um Estado da Federação. Estão em causa a predominância do principio republicano representativo em nossa pátria e o resguardo de um mínimo de moral política, sem o qual as nossas instituições democráticas afundarão no desprestigio e na ruína e cedo teríamos de deplorar o seu naufrágio".
Como não se pode infringir a forma republicana, tem-se como certo que é impossível a prorrogação dos mandatos de prefeitos e vereadores. Conquanto o adiamento das eleições possa ser decretado mediante norma infraconstitucional, em caso de a dilação ultrapassar a duração dos mandatos atuais seria indispensável uma emenda constitucional que não desrespeitasse as cláusulas pétreas, sobretudo a temporariedade dos mandatos e a obediência rígida dos princípios republicanos.
Essa emenda poderia dispor, por exemplo: "Ultrapassando o adiamento o dia 31/12/2020, o mandato de prefeito estará extinto e suas atribuições serão conferidas a um dos juízes de Direito em exercício nos municípios ou comarcas, por ordem de antiguidade, e, nas capitais, pelos presidentes dos respectivos Tribunais de Justiça, ficando autorizados a legislar por decretos em matérias inadiáveis".
Tal dispositivo deveria ser inserido em Ato de Disposições Transitórias, em que se estabeleceria também que "as eleições seriam realizadas assim que as condições sanitárias, ora afetadas pelo risco de contaminação pela Covid-19, as permitissem possíveis".
Assim como a saúde tem de ser preservada, a Constituição e seus princípios não podem ser desrespeitados. Por isso mesmo, prefeitos e vereadores não podem se manter em seus cargos além do prazo que lhes foi fixado pelo mandante, o POVO.
CONJUR
[1] O artigo referido é da Constituição de 1946, então vigente.
[2] Julgamento da Representação 650, sob a relatoria do ministro Gonçalves de Oliveira, 1965)
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