Alunos são consumidores. Esta frase pode ser chocante para quem acredita que a educação é mais, muito mais, do que a mera prestação de um serviço. No Brasil dos anos 20 do século XXI, contudo, essa é uma obviedade: escolas particulares prestam serviços e, segundo a lei, são fornecedores. Isto significa que os estabelecimentos de ensino estão submetidos às regras especiais e protetivas do CDC.
A pandemia do novo coronavírus, de forma súbita, imprevisível e invencível, provocou mudanças profundas no ambiente em que é executado o contrato de prestação de serviços educacionais, ao obrigar os governos a determinarem o fechamento das escolas. O impacto social e econômico dessas medidas ainda está por ser medido e avaliado, mas, de forma imediata, impõe a composição dos interesses das partes diretamente afetadas. Com as escolas fechadas, algumas incapazes de oferecer aulas à distância, todas com a maior parte das atividades suspensas, surge a pergunta: ainda assim são devidas as mensalidades?
Do ponto de vista jurídico, o cenário reflete as incertezas próprias do momento.
Em 25/3/20, a Secretaria Nacional do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça incumbido de “garantir a proteção e exercício dos direitos dos consumidores”1, expediu a Nota Técnica n.º 14/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ que, em suas conclusões recomenda “que consumidores evitem o pedido de desconto de mensalidades a fim de não causar um desarranjo nas escolas que já fizeram sua programação anual, o que poderia até impactar o pagamento de salário de professores, aluguel, entre outros.” A recomendação refletiu-se em outras manifestações no mesmo sentido, como noticiado pela imprensa logo em seguida2.
Os pais, perplexos, enfrentando as dificuldades do isolamento com a missão de educar seus filhos em casa, devem então aceitar a suspensão das atividades, sem qualquer redução do valor das mensalidades? Não é o que preconiza a lei, nem parece seja a solução mais justa, do ponto de vista da boa fé que deve reger as relações contratuais e, especialmente, as de consumo.
O contrato liberal clássico é dotado de força obrigatória, isto é, os contratos devem ser cumpridos conforme pactuados. Esta é a regra. Porém, como todos os fatos da vida que se prolongam no tempo, as relações contratuais estão expostas às intempéries e, por esta razão, excepcionalmente, a lei autoriza a quebra do pacto. A solução não é inédita nem nova. Em 1918, em plena epidemia da gripe, foi editada na França a Lei Faillot, que previa a possibilidade de revisão dos contratos para ajustá-los à realidade do pós guerra. Atualmente, a rescisão ou modificação do conteúdo contratual em hipóteses extraordinárias é prevista na lei civil para as relações paritárias, com a prova da imprevisibilidade do fato, e na lei consumerista, com maior amplitude.
O art. 6º, V do CDC prevê que é direito básico do consumidor a revisão contratual quando ocorrerem “fatos supervenientes” que tornem as prestações “excessivamente onerosas”. O direito à revisão significa que o juiz, em uma ação proposta pelo consumidor, pode alterar disposições do contrato, que havia sido livremente pactuado, a fim de restaurar o equilíbrio entre direitos e deveres. Assim, em razão da ocorrência de fatos que modificam o ambiente da contratação tornando desproporcionais as prestações, é possível intervir no contrato, afastando a vontade das partes. Dentre os instrumentos de controle do contrato de consumo, esta é a forma mais intensa de intervenção na autonomia das partes.
A COVID-19 é uma causa autorizativa desta revisão, uma vez que os serviços educacionais, que envolviam uma série de obrigações para o prestador, deixaram de ser fornecidos nas condições originalmente contratadas. Ainda que haja a continuidade das atividades pedagógicas à distância, o fechamento das escolas implica em redução de custos operacionais como água, luz, gás, limpeza3, além da possível renegociação de salários e aluguéis. Exigir dos pais o pagamento integral por serviços educacionais que não estão sendo prestados conforme contratados significa que o risco da atividade será suportado exclusivamente por eles, também atingidos pelas consequências econômicas da pandemia. Este risco em regra é do fornecedor, a menos que o consumidor prefira assumi-lo, em troca de redução do preço. Isso ocorre, por exemplo, quando o consumidor prefere comprar uma passagem aérea mais econômica, porém não reembolsável. Se o inesperado acontecer e o passageiro não puder viajar na data marcada, é dele o prejuízo. Nos contratos atingidos pela pandemia, o risco deve ser repartido.
O pedido de revisão pelo consumidor tem apenas dois pressupostos: a comprovação do fato superveniente, que é o fechamento da escola, e a ruptura do equilíbrio entre as prestações, com a desproporção entre o valor das mensalidades e o serviço que agora, após a decretação do isolamento, está sendo efetivamente prestado. A lei considera irrelevante a circunstância de estar o fornecedor impedido de prestar o serviço, por “fatos alheios à sua vontade”. O motivo de força maior poderia ser considerado para fins de reparação de danos, mas não é disso que se trata, pois o objetivo é a continuidade do vínculo, com prestações reequilibradas.
A execução dos contratos educacionais se prolonga no tempo, tem especial relevância social e sua finalidade é indissociável da proteção de direitos fundamentais de crianças e jovens. Estas características recomendam a construção de soluções negociadas e particularizadas, de forma a conciliar interesses que não devem ser contrapostos, mas sim convergentes.
Um dos princípios que orientam a aplicação da lei, o CDC, é o da harmonização das relações de consumo, o qual aponta para soluções extrajudiciais. Por isso, a SENACON recomendou que “as entidades de defesa do consumidor devem buscar tentativa de conciliação entre fornecedores e consumidores no mercado de ensino”. Tais acordos devem ser mediados e pautados por critérios objetivos que levem em consideração os custos envolvidos e o risco da atividade4, além de contemplar a situação financeira dos próprios pais, igualmente afetada pela interrupção das atividades econômicas.
Além dos deveres previstos expressamente no contrato, a função criadora da boa fé objetiva permite o reconhecimento de um dever de renegociar5, remédio adequado ao momento de crise e de quebra dos sinalagmas contratuais. A questão requer soluções não individualizadas, as quais estão naturalmente dificultadas pelo distanciamento social e levariam a casuísmo que não se coaduna com a ideia de revisão do contrato, que não deve contemplar situações subjetivas e particularizadas do consumidor, como desemprego e outras mazelas. São os representantes dos pais e alunos que podem e devem dialogar com a direção da escola a fim de construir acordos de natureza coletiva que restabeleçam a proporcionalidade entre as prestações: o serviço que hoje é prestado e a mensalidade devida.
Manter as escolas vivas é interesse da instituição, nesta incluído o corpo discente e seus responsáveis. A solução conciliatória, que contemple todos interesses, é a melhor, se não a única, forma de restabelecer o equilíbrio do contrato de prestação de serviços educacionais, orientada pelo princípio da boa fé, em seu melhor sentido, de cooperação e lealdade.
1 Nos termos do Decreto nº 7.738, de 28 de maio de 2012 que a criou
2 https://agora.folha.uol.com.br/grana/2020/04/veja-como-fica-a-cobranca-das-escolas-durante-a-quarentena-do-coronavirus.shtml
3 https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/aulas-suspensas-alunos-em-casa-tenho-que-pagar-a-escola-31032020
4 Sobre os meios de estabelecer a proporção, assim se manifestou a Profa. Rose Meireles, cf.: “O princípio da proporcionalidade se mostra um critério interessante para pautar essa revisão contratual, com a redução dos valores contratados na proporção do que for efetivamente prestado, o que depende da medição do contrato, em termos de custos fixos e variáveis, bem como a redução ou subtração do lucro estimado.” Disponível em https://www.rmeireles.adv.br/contratos-escolares-em-tempos-de-covid-19
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