terça-feira, 14 de abril de 2020

Qual o valor jurídico das recomendações da Organização Mundial da Saúde?

A pandemia da Covid-19 motiva acesos debates sobre medidas sanitárias como isolamento social, fechamento do comércio, suspensão de aulas e serviços públicos não essenciais. Em meio a informações desencontradas, ganharam bastante peso os protocolos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a análise de conformidade do poder público com os mesmos. Como o Brasil adota a forma federativa de Estado, as políticas da OMS são implementadas em diferentes intensidades por estados e municípios, gerando insatisfação e até medo na população. Seriam, então, as recomendações da OMS meras exortações ou teriam eficácia vinculante? A matéria é objeto de diversas ações no Judiciário, merecendo destaque a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 672, promovida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, questionando as condutas do Governo Federal por desobedecer os ditames da OMS.
Para poder responder à pergunta do título, faz-se necessário primeiro lançar alguma luz sobre o que é a OMS, discorrer sobre o Regulamento Sanitário Internacional e, num terceiro momento, abordar o peso jurídico das prefaladas recomendações.
A Organização Mundial da Saúde e suas funções
O artigo 57 da Carta das Nações Unidas (1945) versa sobre a criação de agências internacionais especializadas nas áreas econômica, social, cultura, educacional e sanitária. [1] Tal proposição gerou frutos já em 1946, na Conferência Internacional de Saúde, que aprovou a Constituição da Organização Mundial da Saúde, internalizada no Brasil pelo Decreto nº. 26.042/1948.
De acordo com a Constituição da OMS, o objetivo da agência é "(...) conduzir todos os povos ao nível de saúde mais elevado possível" (artigo 1º) e suas funções podem ser sintetizadas em proposições colaborativas, no estabelecimento de padrões internacionais na área de saúde, auxílio a estados para melhora de seus serviços de saúde, elaboração de estudos científicos, padronização de nomenclatura de doenças (o famoso Cadastro Internacional de Doenças, CID) e até mesmo o auxílio material direto, se assim consentir o respectivo Estado (artigo 2º). Os verbos ali utilizados auxiliar, fornecer, prestar, estabelecer, estimular, etc. denotam uma agenda de fomento, colaboração e coordenação, sem mecanismos de enforcement de suas políticas.
Uma linha de atuação mais incisiva aparece no artigo 21 da Constituição da OMS, que defere à Assembleia Mundial da Saúde, órgão deliberativo da OMS, o poder de emitir regulamentos sobre temas diversos, dentre os quais, "medidas sanitárias e de quarentena e outros procedimentos destinados a evitar a propagação internacional de doenças" (Constituição da OMS, artigo 21, "a"). Essa foi a base para a edição do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), de 2005, que entrou em vigor no Brasil 15 anos depois, por meio do Decreto nº. 10.212/2020, às portas da pandemia da Covid-19.
Eis, portanto, uma primeira conclusão parcial: a OMS não é uma "vigilância sanitária internacional", não exercendo poder de polícia ou sancionatório perante os Estados Partes, como a ANVISA e equivalentes fazem no âmbito interno. A OMS aspira a melhorar o nível de saúde, mas nesse mister não anula, substitui ou suplanta estruturas governamentais e repartições de competência locais, tampouco se sobrepõe aos centros de decisão domésticos.
O Regulamento Sanitário Internacional [RSI] e sua aplicação na crise da Covid-19
O RSI almeja "(...) prevenir, proteger, controlar e dar uma resposta de saúde pública contra a propagação internacional de doenças, de maneiras proporcionais e restritas aos riscos para a saúde pública e que evitem interferências desnecessárias com o tráfego e o comércio internacionais" (artigo 2º). Cuida-se de diploma fundamental para lidar com situações emergenciais, contendo minúcias a respeito da gestão de portos, aeroportos, transporte de cargas, passageiros, entre outros. Uma das principais obrigações do Estado Parte é notificar a OMS acerca de eventos que possam se constituir numa emergência de saúde pública de importância internacional, bem como compartilhar todas as informações relevantes (artigos 6º e 7º), de modo a permitir a pronta resposta em termos de contenção e prevenção. Para alguns, a China teria descumprido esse dever de notificar e compartilhar dados pela demora em notificar a OMS sobre o surto da Covid-19, bem como por fornecer informações incompletas.
O RSI conceitua emergência de saúde pública de importância internacional como "um evento extraordinário que, nos termos do presente Regulamento, é determinado como: (I) constituindo um risco para a saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional de doença e (II) potencialmente exigindo uma resposta internacional coordenada". A Covid-19 é uma emergência de saúde pública e a OMS decretou situação de pandemia em 11 de março de 2020 e, dias depois, publicou "Ações Críticas de preparação, prontidão e resposta à Covid-19", documento técnico contendo quatro cenários possíveis: 1) Países sem casos; 2) Países com casos esporádicos, importados ou localmente detectados; 3) Países com grupos de casos em locais geograficamente delimitados; e 4) Países com transmissão comunitária, isto é, disseminada. Entre as recomendações temporárias encontram-se higiene das mãos, etiqueta respiratória e prática de distanciamento social, calibrados consoante o grau de disseminação da doença. Além dessas disposições, o site da OMS traz uma longa série de protocolos, atualizados quase diariamente, listando parâmetros para redes hospitalares, laboratórios, cuidados com pessoal de saúde, coleta de dados e muitos outros.
Valerio Mazzuoli defende que tais protocolos têm natureza vinculante, invocando o artigo 2º, "k" da Constituição da OMS, que atribui à Assembleia Mundial da Saúde (órgão da OMS) a competência de "k) Propor convenções, acordos e regulamentos e fazer recomendações respeitantes a assuntos internacionais de saúde e desempenhar as funções que neles sejam atribuídas à Organização, quando compatíveis com os seus fins". Respeitosamente, discorda-se. Não cabe invocar o artigo 2º, "k", da Constituição da OMS, uma vez que as recomendações tão propaladas na mídia )isolamento social, higiene das mãos, uso de máscaras, etc.) não provêm da Assembleia Mundial da Saúde. As mesmas foram concebidas dentro do regime especial do RSI, que disciplina a edição de recomendações em situações emergenciais, como a de uma pandemia.
Retomando, deve-se ter em conta que o RSI é explícito quanto ao caráter não mandatório das recomendações. De acordo com o documento, "recomendação temporária significa uma orientação de natureza não-vinculante emitida pela OMS consoante o artigo 15, para aplicação por tempo limitado, baseada num risco específico, em resposta a uma emergência de saúde pública de importância internacional, visando a prevenir ou reduzir a propagação internacional de doenças e minimizar a interferência com o tráfego internacional". A justificativa para o caráter não vinculante é tanto de natureza política, evitando uma intrusão demasiada nos Estados Partes, como técnica, pela inexequibilidade de uma parametrização de políticas de saúde pública para centenas de Estados Partes, haja vista as infinitas peculiaridades locais e os limites materiais da própria OMS.
Todavia, dizer que as recomendações da OMS são facultativas não as tornam juridicamente irrelevantes. Os tribunais brasileiros são bastante deferentes às posições da OMS, como se viu no caso da proscrição do uso de amianto, prognóstico de doenças, identidade de gênero e alteração do registro civil independentemente de cirurgia e proibição de equipamentos de bronzeamento artificial, só para ficar em alguns exemplos. Não obstante carentes de força vinculante normativa, na prática as recomendações da OMS possuem tamanho peso técnico-científico que praticamente "têm força de lei", amarrando as instâncias administrativas e a controladora judicial. Ignorá-las num arroubo voluntarista seria uma temeridade, com consequências funestas para a autoridade decisora.
A imprescindibilidade de critérios científicos no contexto da Covid-19 é expressa no artigo 3º, § 3º, da Lei nº. 13.979/2020 ao preconizar que: "as medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde (...)". Por outras palavras, em tese, a Administração Pública pode até se distanciar das recomendações da OMS no trato da Covid-19 (por exemplo, intensidade do distanciamento social), mas só poderá fazê-lo mediante apreciação técnica racionalmente fundamentada, por exemplo, explicitando que a medida X ou Y não precisa ser implementada face à ausência de pessoas nos grupos de risco, por ser uma zona geográfica distante e sem casos, etc. Essa margem de apreciação administrativa é assegurada pela Lei nº. 13.979/2020 ao disciplinar a dosagem de medidas de combate à doença, como restrição temporária de entrada e saída do país, bem como locomoção interestadual e intermunicipal, que só serão possíveis após prévia oitiva da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (artigo 3º, VI).
Uma consequência prática do reconhecimento da natureza exortativa das recomendações da OMS é impor obstáculos ao controle judicial. Afora a questão procedimental necessidade de parecer técnico pela ANVISA, como visto acima o mérito da escolha dessa ou daquela medida sanitária, em regra, não conterá parâmetros jurídicos facilmente contrastáveis. Isto é, ao invés de um ato administrativo vinculado (simples aplicação de recomendações da OMS), tem-se um ato administrativo discricionário (escolha técnica entre várias elegíveis), cujas perspectivas de controle judicial são bem mais acanhadas. 
Conclusão
Como visto, não é possível sustentar que as recomendações da OMS tenham efeitos vinculantes para os Estados Partes, aqui incluindo o Brasil. Porém, é completamente desaconselhável que as mesmas sejam ignoradas pelas autoridades, dada a deferência que os tribunais pátrios tem por aquela agência especializada. Por via transversa, acaba-se concedendo uma força quase vinculante às diretrizes da OMS, que só poderiam ser excepcionadas com base em sólidas razões. Em tempos de profunda crise, o gestor público deve adotar a postura mais conservadora possível quanto aos riscos, evitando que o decision-making seja contaminado por subjetivismos e critérios pseudocientíficos, sob pena de responsabilização pessoal.
  
[1] Artigo 57 1. As várias agências especializadas, criadas por acordos intergovernamentais e com amplas responsabilidades internacionais, definidas em seus instrumentos básicos, nos campos econômico, social, cultural, educacional, sanitário e conexos, serão vinculadas às Nações Unidas, em conformidade com as disposições do artigo 63. [...]
 é juiz Federal titular na Seção Judiciária de Sergipe e Mestre e Doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo.


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