O presidente do Senado retira da gaveta um projeto que, mencionando abuso de autoridade, tem o objetivo de reduzir a capacidade de investigação do Ministério Público e da Polícia Federal e de penalização da Justiça
O Brasil é uma Sicília tropical? Quase, mas não é. Na Sicília, há duas leis — a do Estado, o legal, e a do Contra-Estado, o da Máfia, que, na prática, é um Estado paralelo. Aliás, não só na Sicília, porque há outras máfias na Itália, operando na ilegalidade e, cada vez mais, em negócios legais.
Na terra de Rubem Fonseca, autor de romances policiais muito bem escritos e arquitetados, também há máfias, mas sem o “estatuto” do crime organizado da pátria de Tomasi di Lampedusa, autor do extraordinário romance “O Gattopardo” (“se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”). Quer dizer: não se fala em máfia, com esta nomenklatura, mas há uma máfia ou, como na Itália, máfias.
O crime organizado de alto coturno no país de Luiz Alfredo Garcia-Roza, outro autor de romances policiais, é sofisticado. Tão refinado que é difícil mapeá-lo e agarrar seus líderes e operadores. Pensa-se comumente que, no caso da Operação Lava Jato — que apura o mais escândalo político-empresarial-financeiro da história patropi —, se deve às leis a possibilidade de investigá-lo com o máximo de eficiência e autonomia. Isto é um fato: a Constituição de 1988 aumentou os poderes dos setores investigativos, como o Ministério Público. Mas há outro fato, raramente notado e de natureza geracional.
Há uma nova geração de magistrados, procuradores e policiais federais que, acreditando no primado da lei — que sempre precisa estar acima das classes sociais —, decidiu que precisa ser cumprida a qualquer custo. Esta geração é sofisticada intelectualmente, com uma formação jurídica e tecnológica de primeira linha, e é independente em termos financeiros (e é uma bobagem moralista avaliar que promotor, policial e juiz não devem ganhar bem; a autonomia deles advém, em larga medida, da dedicação exclusiva). O resultado é que há autonomia em relação aos poderes político e empresarial. Sergio Fernando Moro, juiz federal, o procurador Deltan Dallagnol e a delegada Erika Malena — cita-se apenas três nomes como símbolos das instituições Justiça, Ministério Público e Polícia Federal, mas há, claro, vários outros — são, além de decentes, competentes. O que eles representam? O fim — ao menos a redução — da impunidade.
Os homens e mulheres do MPF, da PF e da Justiça Federal estão conseguindo, de maneira intimorata, desmontar a quadrilha mafiosa que privatizou o Estado. Fala-se em privataria tucana — e houve mesmo uma privataria, até hoje não inteiramente dimensionada (porque, no lugar de um levantamento amplo do problema, se faz tão-somente uma crítica ideologizada e, no pior dos sentidos, politizada) —, mas o PT de Lula da Silva e Dilma Rousseff, com seus aliados, como o PMDB do presidente Michel Temer e do senador Renan Calheiros e o PP do senador Ciro Nogueira, privatizou o Estado, o que é muito mais grave. O Estado, sob o PT, deixou de servir ao cidadão e se tornou um “dispositivo” de grupos privados, notadamente políticos, empreiteiros, dirigentes de estatais e consultores. Tornou-se um Estado criminoso, atuando contra a sociedade e retirando recursos da saúde, da educação e da segurança pública.
A Operação Lava Jato, um fenômeno tão grande quanto o próprio escândalo que a gerou, não acabou, e não se sabe quando terminará. Mas é plenamente vitoriosa.
Primeiro, levou à cadeia aqueles que assaltaram os cofres do Estado. Segundo, mostrou que cadeia não é lugar só para pobre e classe média — alguns dos homens mais ricos do país foram ou estão encarcerados.
Terceiro, conseguiu um feito que nem sempre se consegue mesmo em países com leis rigorosas a respeito: a repatriação de parte do dinheiro roubado pelas quadrilhas político-empresariais.
Quarto, a condução das investigações e das condenações é de uma independência ímpar — não há nenhum viés político. Tanto que a Operação Lava Jato tem investigado políticos do PMDB, do PT, do PP e do PSDB. O espectro político está quase todo contaminado. O PT é a cabeça da corrupção, com PP e PMDB compondo corpo e membros, mas sobra uma mãozinha, ao menos, para o tucanato, sobretudo, quem sabe, para o senador mineiro Aécio Neves, do PSDB.
Quinto, o fenômeno da delação premiada mostra-se eficiente. Não há como apurar com rigor e precisão escândalos como o mensalão e o petrolão (um gigante perto do escândalo anterior) sem que participantes do esquema decidam, sob pressão da Justiça, “abrir a boca”. É assim em qualquer lugar — como Estados Unidos e Itália. No país do escritor Carlo Emilio Gadda, procuradores e magistrados fizeram acordos com mafiosos — alguns deles assassinos praticamente seriais — com o objetivo de desmontar a máquina geral. Só assim a polícia conseguiu prender e a Justiça condenar os capos Totó Riina e Bernardo Provenzano (este, quando foi preso, estava ouvindo a música tema do filme “O Poderoso Chefão”).
Porém, se a Operação Lava Jato segue a lei, cumprindo-a rigorosamente — tanto que o Supremo Tribunal Federal apresenta poucas ressalvas —, há quem queira “segurar” magistrados, procuradores e policiais federais. O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), um dos reis da política de Alagoas e cacique de Brasília, é o centroavante dos que querem conter as investigações. Com rosto de santo e feições de quem está pagando promessa no sol escaldante de Juazeiro do Norte, Renan Calheiros é um mestre da política, um articulador de primeira linha. O Céu desaba e o senador das Alagoas está lá, impoluto, sugerindo que, se quiser, o papa Francisco pode canonizá-lo. É investigado pela Lava Jato? É. Mas a impressão que se tem é que não é — tal sua tranquilidade pública, mais aparente do que real. Trata-se de um ator — nada canastrão, por certo — e há quem sugira que o delírio dos políticos tem a ver com o fato de que representam como profissionais do cinema, do teatro e das telenovelas. Há quem diga que o coronel Saruê (Antônio Fagundes, na novela “Velho Chico”) é “primo” de Renan Calheiros.
Renan Calheiros é presidente do Senado, mas está se comportando como cangaceiro do estilo Lampião contra a Justiça, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal | Jane de Araújo/Agência Senado
Mas o Renan Calheiros público é diferente do privado. Nos bastidores, joga pesado, articula como poucos. Por mais que seja apontado como suspeito de envolvimento com corrupção, trata-se de um político, comparado aos demais no palco de Brasília, de primeira linha. É difícil aceitar isto, mas é um fato. Mas o Renan Calheiros dos bastidores, espécie de corujão, começa a sair à luz, como se fosse um pássaro preto cantador. Fala grosso contra o “abuso de autoridade”.
Para conter o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal, Renan Calheiros mexeu numa gaveta do Senado e decidiu que vai apresentar um projeto de 2009. Numa leitura rápida, fica-se com a impressão de que o político está agindo em defesa do cidadão. Na prática, está defendendo os políticos, quer dizer, a si próprio. O projeto reza que, no caso de cumprimento de mandados de busca e apreensão de modo vexatório, os responsáveis podem ser punidos. É um ataque ao fato de que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu a prisão de senadores. O “romano” Renan Calheiros pretende, com a mudança da lei, recriar a figura do parlamentar intocável, instalado numa torre de marfim.
O projeto “de” Renan Calheiros — que pode ser nominado de Renangate ou Lavagate — é quase tão escandaloso quanto o Petrolão. O projeto prevê “detenção de um a quatro anos para cumprimento de diligência policial em desacordo com as formalidades legais”. Por instância de Renan Calheiros, o Senado reclamou oficialmente ao Supremo Tribunal Federal contra o magistrado Paulo Bueno de Azevedo, porque este determinou busca e apreensão no apartamento funcional da senadora Gleisi Hoffmann, do PT. Mais uma vez, pensa-se no integrante do Senado como um ser à parte, intocável. Afinal, o apartamento e a senadora são a mesma “coisa”? Não são. Paulo Bernardo, o ex-ministro que chegou a ser preso mas foi liberado pelo Supremo, por acaso não frequenta o apartamento? Ele é marido da senadora paranaense. Se lá estivesse homiziado um traficante, do tipo Fernandinho Beira-Mar, o juiz não poderia decidir por uma busca e apreensão? O mais grave, a suspeita ou acusação de que Paulo Bernardo patrocinou um esquema de corrupção poderoso no governo federal, Renan Calheiros e Gleise Hoffmann nem querem comentar.
Há outros aspectos no projeto. Mas o objetivo principal não é a proteção do indivíduo contra possíveis excessos (abuso de autoridade) de juízes, procuradores e delegados. O que se busca é a proteção de políticos que, só por terem um mandato, se julgam acima das leis. Leis, por sinal, que eles próprios criaram e, quando lhes convém, querem mudar. E mudam. A sociedade, que não fica mais parada, por certo vai contribuir para barrar o Lavagate de Renan Calheiros. Seu projeto, um acinte, é antidemocrático, porque é uma defesa exclusiva de uma casta — a dos políticos com mandato. Ele próprio deve recuar — assim como o senador Romero Jucá.
"Jornal Opção"
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