Tudo mudou, para que tudo continuasse como estava
2011 havia se encerrado com a esperança de que a Primavera Árabe e outros movimentos – como o dos “indignados” na Espanha e o Occupy Wall Street nos Estados Unidos – fossem prova de que a globalização, muito questionada no campo econômico após a crise financeira internacional que se iniciou em 2008, tivesse começado a mostrar que poderia nos trazer algo de bom no campo político, contribuindo, junto com a revolução tecnológica e suas ferramentas digitais, para que velhos regimes fossem desalojados e antigas práticas questionadas.
Um ano depois, a sensação é a de que continua a valer o princípio enunciado na célebre frase “Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”, dita por Tancredi Falconieri ao seu tio, o Príncipe de Salina, no romance O Leopardo, de Giuseppe di Lampedusa.
É a percepção, ao final de 2012, quando vemos a situação de alguns dos países que foram berço da Primavera Árabe e a imutável instabilidade política do Oriente Médio, este ano representada pela guerra civil na Síria, onde Bashar al-Assad resiste no poder, e pelo eterno conflito entre Israel e Palestina, que voltou a ocupar as manchetes nos últimos meses – ainda que, neste caso, o ano também tenha terminado com a novidade do reconhecimento da Palestina pela ONU como “Estado observador não membro”, o que lhe permite aderir a organizações internacionais e lhe propicia novas alternativas de atuação jurídica, como recorrer ao Tribunal Penal Internacional.
E, quando analisamos outras regiões, como a América Latina, e outras áreas, como o comércio internacional e o meio ambiente – o que faremos a seguir – percebemos que velhos problemas continuam resistindo às transformações recentes, o que confirma a impressão de que foi preciso que tudo mudasse, para que tudo ficasse como estava.
A Democracia no MundoO ano de 2012 foi marcado por eleições em vários países – entre eles, alguns que fizeram parte da Primavera Árabe, a qual havia trazido grandes expectativas de que aquelas nações do Oriente Médio e do norte da África enfim abraçariam a democracia. Entretanto, os regimes resultantes desse movimento e os ditadores que insistem em resistir demonstram que somente o desejo por liberdade não foi ainda suficiente para alterar o status quo milenar desses países.
No Egito, por exemplo, Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, venceu a eleição para presidente – a primeira nos últimos 30 anos. Poucos meses depois, milhares de egípcios tiveram que voltar a se reunir na praça Tahrir para protestar contra um decreto, anulado por ele poucas semanas depois, que lhe conferia mais poderes e imunidade perante o judiciário.
Na Líbia, foram realizadas as primeiras eleições legislativas desde 1964. Porém, o país, ao lado do Egito, foi o palco de um dos acontecimentos mais falados de 2012 – e este, infelizmente, não teve nada a ver com as consequências positivas dos processos democráticos. Tratou-se do (terrível) filme "Inocência dos Muçulmanos", ofensivo ao islã, que provocou uma onda de revolta no mundo árabe. Os tumultos começaram em 11 de setembro, no Egito, onde uma multidão protestou na embaixada norte-americana no Cairo. No mesmo dia, na Líbia, um ataque ao consulado norte-americano em Benghazi resultou na morte do embaixador, John Christopher Stevens, e de mais três funcionários.
Com recaídas autoritárias e demonstrações de intolerância, tudo leva a crer que o resultado imediato do movimento de 2011 possa ser, infelizmente, a simples substituição de regimes autoritários por outros. Para se instalar na região, parece que a democracia vai precisar de mais estações do que apenas uma primavera.
A União Europeia, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, passou 2012 sem que seus líderes – entre eles François Hollande, presidente da França eleito neste ano – encontrassem solução para a crise econômica que persiste na região. E se as autoridades se mostram desorientadas, os protestos em países como a Espanha e a Grécia evidenciam que a população não está mais disposta a suportar o amargo remédio da austeridade, mesmo porque ele pouco resolveu até o momento.
Nos Estados Unidos, as eleições também não trouxeram mudança. Reelegeu-se o candidato que, ironicamente, tinha por slogan exatamente essa palavra – “change” – em sua vitória anterior, após uma campanha que deixou mais clara do que nunca a diferença na maneira como republicanos e democratas enxergam o papel do Estado e a questão da oportunidade.
Os republicanos continuaram defendendo a redução de impostos e a simplificação das regulações, menosprezando abertamente aqueles que dependem do governo, como fez Mitt Romney no vídeo em que criticava os 47% da população nessa condição. Já os democratas apostaram no discurso de que cabe ao Estado garantir a igualdade de oportunidades. No final, venceu Obama, que entendeu melhor que seu país se tornou menos homogêneo, e foi premiado por sua empatia.
Na Rússia, Vladimir Putin foi questionado ao ganhar um terceiro mandato como presidente depois de passar os últimos quatro anos no cargo de primeiro-ministro. O Japão, que continua sofrendo as consequências do terremoto do ano passado e enfrenta dificuldades para sair da recessão, acaba de eleger como primeiro-ministro Shinzo Abe, que já havia governado o país em 2007. E a China também escolheu seus novos líderes, em um processo que, ao contrário da habitual frieza, trouxe um ingrediente quente: a corrupção. Casos envolvendo altos membros do Partido Comunista foram explorados politicamente por seu novo secretário-geral, Xi Jinping que, por conta de seu comportamento inicial, chegou a despertar referências à Gorbachev e à Glasnost. Há poucos dias, introduziu a expressão “Estado de Direito” em um dos seus discursos. Surpreendente será se as flores desabrocharem antes em Pequim do que nos países árabes.
América Latina e MercosulEm 2012, a América Latina (o Brasil, que deu provas de maturidade no julgamento do mensalão, é uma das exceções), continuou sem conseguir dar grandes demonstrações de evolução institucional.
Chávez se reelegeu na Venezuela, mas o clima neste final de ano é de incerteza, porque uma recaída em sua doença o obrigou a ser submetido a nova cirurgia e, caso ele não consiga se recuperar até 10 de janeiro, data marcada para sua posse, novas eleições terão que ser convocadas.
Os governos de Equador e Argentina passaram o ano sob a acusação de cercearem a liberdade de imprensa. Na Argentina, o tom de instabilidade já havia sido dado em abril, após Cristina Kirchner decretar a expropriação da participação que a espanhola Repsol possuía na Yacimientos Petrolíferos Fiscales, ocasião em que o vice-ministro da Economia afirmou que a indenização a ser paga à Repsol ficaria muito longe daquela pleiteada pela empresa, e que "segurança jurídica e ambiente de negócio são palavras horríveis". Essa linha de atuação vem prejudicando o país, trazendo uma série de dificuldades econômicas e despertando protestos.
No Paraguai, o Congresso cassou o mandato do presidente Fernando Lugo em um processo de impeachment relâmpago. Ironicamente, no plano regional, a mesma Venezuela que vem se destacando por sua escalada rumo ao autoritarismo se aproveitou da suspensão do Paraguai para entrar no Mercosul. Claro que a saída do presidente paraguaio, se foi legal, foi pouco legítima. Mas os demais países membros do Mercosul, ao incluírem a Venezuela às pressas no bloco, também deram mostras de não levarem tão a sério o devido processo legal, desrespeitando o Protocolo de Ushuaia que prevê a necessidade de consultas antes de uma decisão tão séria como suspender um Estado-membro acusado de ruptura da ordem democrática.
Por fim, na reunião de Cúpula do Mercosul realizada em Brasília no início de dezembro, o presidente da Bolívia, Evo Morales, assinou o protocolo de adesão de seu país ao bloco. Esse instrumento define as etapas para a plena incorporação de Bolívia, que acontecerá assim que os Parlamentos dos Estados membros o ratificarem. É esperar para ver se a entrada de outro país “bolivariano” será mais uma mudança que servirá apenas para que tudo fique como está, mantendo-se as dificuldades que o Mercosul vem enfrentando há um bom tempo – como as barreiras protecionistas que prejudicam o comércio dentro do bloco, as inúmeras exceções à tarifa externa comum e os entraves para assinar acordos comerciais com outros parceiros.
Comércio Internacional e ProtecionismoSe crises econômicas costumam provocar protecionismo, grandes crises econômicas tendem a causar grande aumento no protecionismo. Desde 2008, a maioria dos países tem procurado recuperar suas economias valendo-se, quase sempre, de medidas paliativas de caráter protecionista. Em 2012, continuamos a sentir os efeitos disso.
Além da crise, uma das justificativas para o protecionismo tem sido a subvalorização excessiva de algumas moedas – assunto abordado pela presidente Dilma Roussef na sessão de abertura da Assembleia Geral da ONU neste ano. É certo que essa variação, quando proposital, deveria ser impedida, por equivaler a um subsídio às exportações. A Organização Mundial do Comércio (OMC) irá precisar, em algum momento, tratar dessa questão cambial, pois ela põe em risco todos os compromissos acordados naquela organização, ao tornar pouco realistas os tetos e alíquotas anteriormente negociados. É uma discussão que, certamente, ainda terá desdobramentos no ano que vem.
O protecionismo, no entanto, é uma arma que deve ser adotada com muito cuidado, pois, justificável ou não, seu tiro pode sair pela culatra, provocando uma retração do comércio internacional que leva a um empobrecimento geral. Isso é grave, principalmente quando este comércio já vem sendo tão afetado pela crise. Como divulgado pela OMC, em 2012 o comércio internacional sofreu uma contração, o que não era visto desde 2009, quando a economia global registrou o pior ano para as exportações desde a 2ª Guerra Mundial.
O Brasil, durante este período, não fugiu a essa regra. Desde 2008, o país vem criando, em média, uma nova barreira a cada 15 dias, o que contribuiu para alçá-lo, já no final de 2011, à posição de economia mais fechada do G-20, segundo levantamento realizado pela Câmara Internacional de Comércio.
É verdade que parte das ações adotadas pelo governo são de legítima defesa comercial, e não são necessariamente protecionistas. Outras, entretanto, servem apenas para preservar a ineficiência – como o aumento indiscriminado de algumas alíquotas de importação – e podem ser nocivas ao país, levando a perda de competitividade e diminuição do bem-estar geral da população.
Um contraponto positivo na área de comércio internacional envolvendo o Brasil foi a aprovação pelo Senado, em outubro, da adesão à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias – a Convenção de Viena – que tem por objetivo padronizar as regras aplicáveis a esses contratos. Estabelecida em 1980, essa Convenção reúne 78 países que representam 90% do comércio mundial, incluindo os principais parceiros comerciais do Brasil, como os Estados Unidos, a China, a Argentina, a Alemanha e o Japão. Questões práticas como formas de pagamento, entrega, seguro ou garantia passarão a ser orientadas por regras neutras, uniformes e detalhadas, o que diminuirá os custos de transação, beneficiando principalmente as pequenas e médias empresas que têm menos recursos para negociar esse tipo de contratos e proteger seus interesses.
Desenvolvimento sustentável e negociações climáticasNenhum tema demanda maior esforço de cooperação internacional hoje do que as mudanças climáticas e a busca do desenvolvimento sustentável. E este ano foi marcado por oportunidades mal aproveitadas de tomar decisões que favorecessem essas duas frentes da mesma luta. Não apenas na Rio+20, o grande evento internacional do ano, realizado em junho, mas também na 18ª Conferência das Partes signatárias da Convenção Quadro sobre as Mudanças Climáticas da ONU, ocorrida agora em dezembro em Doha, no Catar.
Para o canadense Maurice Strong, que foi secretário-geral da Rio-92, algumas partes do relatório final da conferência Rio+20 foram tão fracas que poderiam ter sido impressas "em papel higiênico". É uma figura de linguagem pouco agradável, mas que tem um fundo de verdade. Infelizmente o documento aprovado é vago, não determina obrigações vinculantes ou metas e não estabelece um plano claro para a transição rumo a uma economia verde.
Por outro lado, o pior que poderia acontecer talvez fosse chegar ao final da Rio+20 sem nenhum acordo – e o texto aprovado, ao menos, reafirma alguns princípios importantes relacionados ao desenvolvimento sustentável, contribuindo para consolidar um discurso que aponta o caminho certo.
A principal conclusão do encontro foi a de que os Estados não são capazes – sobretudo por falta de condições políticas – de promover as mudanças necessárias. Assim, a ampla participação da sociedade civil e das empresas na Rio+20 deve ser vista como algo positivo. Uma população esclarecida e organizada é um agente fundamental de mudança, pois força governantes e empresas a se comprometerem com práticas mais sustentáveis. Empresas que tenham aderido a essas práticas, por sua vez, tendem a exigir que as políticas por elas adotadas se estendam a todo seu setor, contribuindo, assim, para formar o ciclo virtuoso da sustentabilidade que será realimentado pelo engajamento generalizado.
A Rio+20 serviu para aumentar o envolvimento desses atores nesse processo, o que não é pouca coisa. A tarefa de evitar o esgotamento dos recursos do planeta e deter o aquecimento global requer a adaptação de toda a nossa economia e estilos de vida, o que vai exigir esforços conjuntos, amplos e simultâneos como nunca se viu. Porém, os Estados não deixam de ser parte fundamental dessa equação e, até o momento, eles estão em falta.
Na COP18 recém-encerrada a falta de uma ação mais efetiva dos governos se repetiu. Pouco se avançou na discussão do futuro acordo global previsto na COP que ocorreu em Durban um ano antes.
O principal aspecto positivo foi a extensão do Protocolo de Kyoto, cujos compromissos assumidos pelos países signatários expirariam no final deste ano. Apesar de todas as suas falhas, esse Protocolo é o único instrumento legal que obriga objetivamente à limitação das emissões de gases de efeito estufa.
Logo, o fato de que alguns países – como os da União Europeia, a Austrália e outras nações industrializadas – tenham assumido um segundo período de compromisso para redução de suas emissões entre janeiro de 2013 e dezembro de 2020, tem certa importância. Ele assegura que não haverá um vácuo entre o fim do primeiro período de compromisso do Protocolo e a celebração de um novo acordo global, mantendo vivos instrumentos importantes, como Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e o mercado de créditos de carbono.
Apesar disso, os países que aceitaram se engajar em um segundo período de compromissos seguem representando menos de 15% das emissões globais de gases de efeito estufa. Grandes emissores – como Estados Unidos, China, Brasil e Índia – seguem de fora do Protocolo e, para enfraquecer ainda mais esse acordo, Japão, Rússia, Nova Zelândia e Canadá decidiram não aceitar novos compromissos.
A forma como 2012 terminou, portanto, dá mais motivo para preocupação do que para otimismo. Na área do meio ambiente, ao contrário das demais aqui analisadas, a certeza é que, se nada mudar a partir do ano que vem, o Clima não ficará como está.
Eduardo Felipe Matias é sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados, Doutor em Direito Internacional pela USP e mestre pela Universidade de Paris, com pós doutorado na Espanha pela IESE Business School.. Alguns dos temas aqui abordados foram explorados com maior profundidade em artigos do autor reunidos no blog: http:// eduardofelipematias.blogspot.com.br/ (Twitter: @EduFelipeMatias)
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